Tuesday, June 8, 2010

Demónio

Decidi postar este texto para não me esquecer que o escrevi, e porque não quero desistir de escrever.


Desculpa-me por este último cigarro, sei que odeias o cheiro a tabaco. Como estás agora? Agora que já não amas, não odeias, não sentes? Aliviada? O mundo está mais calmo sem o som dos teus gritos e choros. Maldita mulher, tentativa falhada de anjo. O meu corpo todo suspira enquanto olho para um céu que não me aceita e penso num inferno que me fechou as portas. Que nome se dá a um demónio que perdeu os cornos?

Não sei se és especial, és sim diferente, olhei para ti e vi-te. Gostei do que vi, aproximei-me e segui-te, no único mundo no qual não me poderias ver. Libertador e asfixiante, mistura de emoções que fez o meu coração, parado numa diferente era, bater mais depressa. Infantil, retrocedi no tempo, parei de pensar, olhei para ti, memorizei o teu sorriso, repudiei os teus homens e fiquei do teu lado. Fechei a porta ao resto do mundo. Vi a tua vida como um filme numa tela de cinema. O teu espectador, até que um dia também olhaste para mim e me viste.

Perder a eternidade por uma mulher, quantas vezes isso aconteceu em romances, em sonhos, em religiões e em filmes? A dor dos meus cornos a apodrecer é insuportável, penso que não vales a pena enquanto me abraças e tentas ajudar-me a suportar a dor. Maldita mulher. Não quero nada de ti, entrei no filme que apenas assistia. Vejo-te chorar, a chorar por mim, assustada com a visão do meu nascimento como homem.

Decido que não te quero quando finalmente te tenho, desdenho dos teus esforços e faço amor contigo violentamente. Talvez os humanos temam os demónios porque só os reconhecem quando eles se tornam parte do mundo deles. Sou um demónio porque me tornei humano. Maldita mulher, definha a cada dia que passa e arrasta-me com ela para um fim sem esperança. Gritamos, saio de casa, abandono-te, tento expulsar-te da minha mente, bebo, destruo-me um pouco mais e volto para ti. Apanhas os meus pedaços.

Quando, numa manhã, acordo e procuro por ti, sei finalmente quem agora sou. Inconscientemente, e não totalmente desperto, é por ti que anseio, tomo-te como certa, volto a acreditar na vida eterna quando ela se tornou apenas numa fantasia. Fantasia de um ser mortal. És a minha mulher, vi os dois mundos, e vagueei por tempos, eras e lugares que nunca verás, parei quando te vi. Parei simplesmente por parar. Tiraste-me os cornos, desfizeste a minha alma intacta, corrompi-me na tua presença. As portas do inferno estão fechadas. Partilhamos o mesmo tempo.

As folhas de Outono caem perto de ti e o vento forte arrepia o meu corpo pouco agasalhado. Ajoelho-me a teu lado e conto-te como foi o meu dia banal, conversa trivial, e consigo ver a tua expressão atenta. Adoro isso em ti, nunca me fizeste sentir ridículo ou desvalorizado. Minha bela mulher. Perdoa-me por não te trazer flores hoje e perdoa-me por não ter feito a barba. Amanhã, amanhã vai ser diferente. Amo-te. Sei que pensas que te amo por costume, se calhar tens razão. Interessa assim tanto isso agora?

Beijo a ponta dos meus dedos e passo-os pela tua fotografia sorridente. O teu túmulo sem adornos distingue-se de todos os outros. O lugar, onde os meus cornos um dia estivaram, dói-me.

Texto por: Snow White
(Imagem: James Jean)

1 comments:

euexisto said...

está bom. passagens de que gostei mesmo. mas o mais importante é tu gostares. outra pessoa a gostar nunca te dará o mesmo gozo. de resto, a parte que não percebo ou me passa ao lado deve ser porque é pessoal e se calhar só mesmo tu é que entendes. a magia da escrita: ser nossa, apesar de muitos a poderem achar sua também. abraço,
Júlio

Post a Comment

Related Posts with Thumbnails