Saturday, June 12, 2010

Isaura


Lúis Miguel Ferreira, que completara vinte e três anos ha dois dias atrás, começava o dia às seis da tarde, bebia um café, comia uma fatia de pão sem nada, beijava o quadro que os pais lhe compraram quando ele tinha nove anos e dirigia-se, por fim, para o seu próprio atelier. De momento era pintor. Não era excepcional nessa actividade. Foi um evento marcante, a compra do dito quadro. No dia doze de Fevereiro, do ano de 1995, o jovem Luís deparara-se com a mulher da sua vida. Sim, o amor não tem idade, mas normalmente acontece entre dois seres humanos, não entre um rapazinho de nove anos e uma tela no meio da rua de um dia de inverno. Mas fiel aos seus sentimentos e princípios, Luís Miguel não arredou pé do lado da mulher de papel e do “senhor de barbas” que a tentava vender por um preço que Joana Ferreira considerava um verdadeiro roubo. Mas, felizmente para todos, dinheiro não era algo que escasseasse na família Ferreira e, finalmente, após quinze longos minutos de birra por parte do menino Luizinho, Joana comprou o maldito quadro com o dinheiro que o seu marido André Ferreira, médico dermatologista, lhe dispensava todos os meses. Nunca, a então jovem mãe, pensou que isso seria o mais próximo de um relacionamento que o seu amado filho iria ter nos catorze anos que se seguiram. “Isaura”, nome que o jovem pusera à mulher representada na tela, acompanhou-o durante todos os momentos da sua vida, e desde há uns três anos para cá, a obsessão só aumentava, principalmente depois dele se ter cruzado com Francisca Gonçalves.

E quem era esta? Agora é a vez de falar sobre a rapariga que completa esta história.

O que ia na cabeça de Francisca? A altura ideal para o que quer que seja é tão difícil de se encontrar, que acaba por ser sempre tarde demais, ou cedo demais, para se iniciar algo do qual se goste realmente. E era este o pensamento matinal de Francisca Gonçalves de 29 anos, durante o duche, antes de ir para o trabalho. Trabalhava num desses mini mercados já há seis anos, daqueles que se vê por aí, a serem completamente ameaçados pelos gigantescos monstros que são as grandes superfícies comerciais. Nunca foi para a faculdade, ou melhor, foi, mas um semestre chegou para Francisca perceber que aquela não era vida para ela. E então, vivia cada dia que passava sem quaisquer planos de futuro, de romance, e, por vezes, na mais completa apatia interior. Apenas interior porque exteriormente o seu sorriso era usado constantemente, tão constantemente que até a enganava a ela própria, por isso, na maioria do tempo Francisca acreditava que até era feliz. E porque não haveria de ser? Como poderia dizer que se sentia sozinha durante todo o dia? Os seus pais eram vivos, tinha amigos e vivia num ambiente sempre repleto de pessoas. Como não conseguia justificar o sentimento de solidão, convenceu-se a si própria de que ele não existia.

Imaginem agora o espanto da rapariga, quando Luís Miguel, com os seus sapatinhos de vela e petrificado com um Twix na mão, completamente crédulo de que tinha acabado de encontrar a sua “Isaura”, lhe desmaia mesmo em cima do balcão depois de ela o atender. A chatice que isso não foi, mas Francisca, completamente no controlo da situação, esbofeteia-o um bom par de vezes, ou mais, sem o mínimo de gentileza, até o rapazito recuperar os sentidos.

Dois meses depois, quando finalmente ela se convenceu de que Luís Miguel não era um louco perigoso, lá começaram a sair juntos. O rapaz entornava bebidas, deixava a comida cair nas constantes camisinhas às riscas que usava e não fazia a mínima ideia do que haveria de fazer com a Francisca. Um suspiro de irritação, uma ou outra reprimenda, e os dois lá se entendiam. Entre conversas superficiais, filmes de comédias românticas, ou sessões de cinema francês que o Luis Miguel tanto adorava, os dois lá se foram tornando inseparáveis. E um dia Francisca apercebe-se de que aquela sensação de solidão tinha passado, e fecha a loja toda sorridente. Não com o sorriso de atender clientes, mas sim com o tipo de sorriso que se estende mesmo até aos olhos e cria pés de galinha.

Vão para a cama, num quarto apenas com uma cama e cheio de maus quadros pendurados nas paredes. Luís Miguel, consegue aguentar-se dentro de Francisca uns dois minutos e depois enrola-se nele mesmo a chorar. Isto da perda de virgindade para um homem é sempre um assunto delicado, principalmente quando o homem em questão é o Luís Miguel Ferreira. Ele vira-lhe as costas e ela abraça-o por trás e faz-lhe festas no cabelo, e, quando isso se prova infrutífero para apaziguar a criatura, Francisca sussurra-lhe ao ouvido palavras doces e beija-lhe o rosto. Escusado será dizer que foi como recitar um feitiço e o sexo foi melhorando à medida que a noite passava.

Mas teve de chegar o dia, em que o Luís Miguel, inconscientemente, tratou a Francisca por “Isaura” logo a seguir a uma confissão de amor . E ela, mulher decidida e furiosa, vestiu-se em cinco minutos e deixou-o sozinho e nu na cama onde tinham acabado de fazer amor. Lentamente, mas o mais apressadamente que podia , o rapaz vestiu as calças e foi à janela ver se ainda a via. E viu, Francisca ainda estava bem ao seu alcance. E não foi preciso mais nada, ele voou pelas escadas abaixo sem camisa e sem sapatos e chamou-a ate estarem a um braço de distância um do outro.

E os olhares do povo? Eram os pedintes e os empresários a assistirem à cena. E Luís Miguel até se põe de joelhos a implorar para que Francisca voltasse com ele para casa. A rapariga, vendo-se rodeada de tantos olhares, e já meia comovida, lá o segue de volta.

E o mítico quadro é revelado, “Isaura” é posta em frente de Francisca e a sua historia é contada. Incrédula, a rapariga mal arranja palavras para definir tal situação.

Mas o mais interessante, e que fez com que ela abraçasse o seu amado fortemente e com ternura, foi que a “Isaura” do Luís Miguel não tinha qualquer semelhança com a imagem de Francisca Gonçalves.


(Apetecia-me escrever qualquer coisa diferente e saiu isto.)


Texto por: Snow White
(Imagem de João Ruas)

2 comments:

Darkangus said...

Penso que seja o teu texto mais contido em termos de escrita, mas como sempre um prazer de ler...
Obrigado... =)

Anonymous said...

Pois a mim o que me apetece escrever e dizer neste momento, é que apesar de adorar as tuas coisas "iguais", tb quero mais destas tuas coisas "diferentes" =)
Nunca deixes de experimentar e de explorar novos caminhos e acima de tudo, nunca, nunca, nunca deixes de escrever =)
CatPrince *

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