Talvez te dê flores mortas da próxima vez que te encontrar, talvez flores mortas sejam mesmo a escolha certa para ti. Flores que se desfaçam em pó quando as tocares e que se misturem com o nada que te rodeia. Não, desculpa, não é o nada que te rodeia. É o nada que transmites e de que te fazes acompanhar. Esse nada que me atormenta de cada vez que os meus olhos se cruzam com os teus. Não te consigo Ver, apesar de todas as horas que perdi a olhar para ti.
Estou cansada de te seguir, de acompanhar todos os teus passos e atitudes vazias. Não sei, não sei sequer mais o que devo proteger. Respiro fundo enquanto me elevo bem alto, quero ver-te de longe. Uma ligação indesejada, prisão, é esse o teu significado para mim. Vou sentindo, aos poucos, uma ânsia de liberdade a apoderar-se de todo o meu ser a cada batimento cardíaco e a cada golfada de ar que inspiro. Não me atrevo a prestar atenção aos pensamentos que se tentam fazer ouvir dentro da minha mente.
Vou simplesmente voar até ti, só tenho de voar para ti, mas não consigo, as minhas asas não abrem. Mas não preciso delas, digo para mim mesma vezes sem conta, asas de anjo são só para enfeite, não preciso de as usar para ir ter contigo. Asas entorpecidas, gastas sem terem sido usadas, velhas e belas. As minhas imponentes e intactas asas roxas.
Dou comigo a pensar no teu rosto pálido… memorizei as tuas feições de tal maneira que sempre que fecho os olhos a tua imagem me atormenta. Não quero isto, não quero mais estar ligada assim a ti. Mas mesmo, contra todas as minhas vontades, desejos e fugas, estou aqui de novo, caída a teus pés, a tentar proteger-te de um mundo que nem sequer sei se comecei alguma vez a entender.
Vejo-me contigo, mais uma vez, num parque vazio, observo-te enquanto te sentas num banco de jardim, sento-me a teu lado, já quantos anos passaram desde a primeira vez que nos sentamos neste mesmo banco juntos? Revolta-me a tua indiferença, a tua maneira obstinada de não tirar os cabelos, que teimas em deixar crescer, da frente dos teus olhos, e acima de tudo revolta-me o teu olhar, que nunca é dirigido a mim. Sinto que eternidades passaram, que eu envelheci, que os meus cabelos ficaram brancos e a minha pele enrugou durante todo este tempo que gastei contigo.
Não trocamos uma única palavra, nem sei sequer se me vês. Estás completamente imerso nos teus pensamentos. Sei que nenhum é dedicado a mim. Vejo-te levantar do nosso banco e atravessar as várias ruas em direcção a tua casa. Odeio a maneira despreocupada como andas, sem olhar para os lados, sem olhar para trás, sem sorrires uma única vez e sem reparares que estou a estender a minha mão até tentar alcançar a tua. Não entendo o teu mundo… não vês a minha solidão? A minha raiva cresce um bocadinho mais todos os dias. Preciso de conseguir voar, voar para longe, mas esse pensamento faz-me rir, porque afinal, asas de anjo são só para enfeite… e, pela primeira vez, senti o peso morto das minhas belas asas roxas.
Vi a tua expressão mudar e senti o teu olhar cruzar-se com o meu sem mais uma vez me veres realmente. Vi-te a sair apressado de casa com uma caixa velha debaixo do braço e vi-te a ficar encharcado debaixo de uma tempestade de Inverno e, desta vez, não te dei a mão, nem te puxei para mim enquanto novamente atravessavas as ruas apenas a olhar em frente. E sim, vi-te a cair com o embate de um carro contra o teu corpo, e senti-me a petrificar com a imagem do sangue que jorrava de uma ferida aberta na tua cabeça. O sangue empapava os teus cabelos e a chuva intensa encharcava-te a ti e à velha caixa caída a teu lado.
Levei as mãos à boca devido à imagem que me proporcionaste. Andei até ao teu corpo ferido e protegi o conteúdo da caixa que guardaste por tantos anos. Flores velhas, amontoadas umas em cima das outras, revelavam-se perante os meus olhos. Não eram rosas, não eram orquídeas e muitas delas já não eram nada mais do que pó, mas a visão delas fez todo o meu ser estremecer. E foi aí que, pela primeira vez, os teus olhos se cruzaram verdadeiramente com os meus. Sei que tentaste falar e sei que levantaste o braço para me tocar… não me alcançaste. Não fazia parte de nenhuma das nossas realidades estarmos ao alcance um do outro.
A cabeça doía-me, as asas pesavam-me mais do que nunca e um calor estranho inundava-me aos poucos. O ódio, a solidão e a revolta estavam esquecidos a um canto, oprimidos por esta intensidade de sensações. E tu levantaste-te, e fixaste os teus olhos nos meus, a minha cabeça lateja, vejo-te a caminhar na minha direcção. “Deixo-te flores roxas em troca das tuas asas” e atravessas-me. Sinto-te a cortares-me, a dor é demasiado intensa, sangue tapa-me a visão. Não me consigo mexer e vejo-me a ser rodeada por algo que inicialmente me pareciam pétalas de flores unidas. Estranho, simplesmente estranho. Pétalas de flores roxas talvez… deixei-me perder nestes pensamentos enquanto tu abrias as enormes e imponentes asas, que um dia me pertenceram, e nos envolvias aos dois. “Eu fico com a tua solidão e tu ficas com o meu estranho mundo, meu anjo caído”.
Mãos levantavam o meu corpo, o sangue tinha parado de jorrar. A minha despreocupação quase me custara a vida e, no meio da minha confusão de memórias e pensamentos, a imagem de uma mulher, com imponentes asas roxas, destacava-se. Pergunto-me "quem é que ela poderia ser?", e qual o motivo que fez a minha mente voar ate à sua imagem. Algo do passado, mas que passado foi esse? Mas penso nisso mais tarde, agora sinto a exaustão a apoderar-se do meu corpo… talvez me deixe adormecer, envolvida pelo estranho sentimento de segurança que tende em manter-se a meu lado. E os meus olhos cerram-se sem verem o rapaz de olhos tristes, que teimava em rodear-me no seu abraço protector, ao mesmo tempo que me envolvia com as asas de um anjo caído, agora presas nas suas próprias costas nuas.
Texto por: Snow White
(Image by James Jean)
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