Esqueci-me de sorrir para o bando de desconhecidos com quem vou sair hoje. E assim, de repente, já não gostam de mim. No meio de uma confusão ou outra, a coscuvilhice começa nas minhas costas. Então saio do café para fumar um cigarro e deixo-os falarem mal de mim à vontade. A tudo uma pessoa se pode habituar. Uma mulher habitua-se a levar porrada do marido e a ainda achar que é por amor, e um cão habitua-se a andar atrás daquela vizinha velha por aquele pequeno pedaço de pão que o alimenta uma vez por dia, mas que não faz com que deixem de se ver os ossos das costelas.
E lá fora estou em paz, o tempo não está bom mas não está a chover, encosto-me a uma parede e prendo o cabelo com os mesmos elásticos que uso há quatro anos. Foda-se, esta noite vou ter que me aguentar e voltar lá para dentro. Acabo o cigarro tão depressa que nem sequer noto aquele movimento automático de ir buscar outro ao maço. Ah não, não vou fumar mais do que um, e deixo-o cair no chão húmido da chuva que se fez sentir há uma horinha atrás. Lá se foi o meu ultimo cigarro da noite.
Se calhar devia dizer que me veio o período, que estou com dores insuportáveis, e simplesmente ir-me embora. Os minutos vão passando e eu não saio do sitio em que estou parada. Sozinha, cá fora à noite, a olhar para um céu sem estrelas.
É então que um homem sai de repente lá do cafézito, e quase colado a mim acende também o seu cigarro. Trocamos uns olhares, nada de especial, só para notarmos a presença um do outro. E o tempo passa, por esta altura ele já tinha parado de fumar há muito tempo, e só soltava uma tossidela de vez em quando.
“Não vai voltar lá para dentro?”, pergunta-me ele do nada, num tom nem baixo nem alto e eu olho-o espantada e não respondo. Que mau hábito este. Não vou fazer o esforço de juntar palavras para uma resposta ácida agora, estou mesmo sem paciência.
Ninguém nos vem procurar cá fora, nem a mim nem a ele e, num silêncio estranho, continuamos os dois parados no mesmo lugar, eu perdida em pensamentos e ele a tentar evitar ataques de tosse. “Só me faltava mais esta”.
“Eu conheço o teu tipo”, diz ele já num tom de voz mais desrespeitoso. Ah só deus sabe o quanto eu adoro teorias de bêbados. Mas mesmo assim lá fico, sou tão teimosa. E não é que começa a chover e nenhum dos dois arreda pé.
Agradeço pela chuva de verão e pelo seu efeito, que me permite estar cá fora só com uns jeans e uma camisola de manga curta sem sentir frio. Às vezes até limpa a alma e afasta as melgas. Mas o homem também era teimoso, ajeitava os seus oculinhos todos retro cheios de pequenas gotas de chuva, e lá estava, em silêncio e cabisbaixo encostado à parede.
“Dá uma volta comigo, só andar, não estou sóbrio o suficiente para tentar o que quer que seja contigo”. E eu, não sei porque, solto o cabelo, mordo o lábio inferior e respondo: “Foda-se, vamos lá então.”
Ele só era uns centímetros mais alto que eu, magro e olhava para o chão enquanto andava e, depois de uns minutos de estranheza, o passo a que andávamos finalmente encontrou um ritmo certo. Achei tão burlesco, dois desconhecidos a passearem pela baixa do Porto com uma chuva miudinha a cair. Ai estes impulsos de verão, misturados com essa tua camisola amarela estão a fazer os meus lábios contorcerem-se num sorriso.
E então conversamos, sem reservas. Começamos por falar do tempo, da cidade e depois de filmes e livros. E tu falavas e falavas, e sem trocarmos os nossos nomes e informações sobre o modo de vida de ambos, chegávamos às mesmas conclusões. Somos pessoas criadas atrás de ecrãs de computadores e de televisores. Pertencemos a esta nova espécie, que diz o que sente por outra pessoa através de um comentário deixado no Facebook.
Entramos num café, tu pedes uma imperial e eu peço um fino. Exactamente a mesma coisa, dita de maneiras diferentes e, olhamo-nos cara a cara, através de um embaraço disfarçado. Olhar nos olhos de uma pessoa é uma tarefa complicada para ambos, mas as palavras saem sem nenhum enrolamento da língua. E assim conheço-te e falo contigo sobre o que me preocupa, deixa feliz e deixa triste. Tu fazes o mesmo e arrancas-me sorrisos verdadeiros.
Pela manhã, apanhas o comboio que te leva para a tua terra e eu, cheia de sono, mas completamente desperta, corro para casa e atiro-me para cima da cama sem me despir. Eventualmente adormeço, e só quando acordo, já a horas de ter que ir almoçar, é que me lembro que me esqueci de te perguntar quem eras.
Não importa. Momentos assim não devem ser repetidos, porque ou se vão estragando ou se vão tornando num vicio destrutivo, tal como aquela nossa bebida alcoólica favorita.
Texto por: Snow White
(Imagem de James Jean)
7 comments:
Pah concordo perfeitamente e como sempre adoro as comparações!
muito obrigada por gostares =] anima-me muito mesmo
Cru...
Frio...
Perfeito
"Perfeito", tu sabes fazer uma mulher crescida corar. Agradeço, do fundo do meu pequeno coração, esse "perfeito".
Magnífico, está lindo. Adoro as tuas figuras de estilo, principalmente as expressões antagónicas: Cheia de sono, mas completamente desperta.
Isto sim, é contraste e acorda o leitor. Acho que é "terrivelmente bom" expressão utilizada por uma pessoa amiga.
Lol esse meu "terrivelmente bom" já não se esquece mais lol. Estou contente por te conseguir acordar.
... tinha de ter óculos ... ;)
está magnífico ...
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