Narciso é bom rapaz, só que sempre que sai à a rua caminha a olhar para o chão, como se as pedras da calçada guardassem segredos que só ele consegue ver. Anda assim Narciso à solta no mundo, taciturno e entretido com ele mesmo. Tem de se embebedar para soltar duas ou três palavras dirigidas à Laura, de quem ele tanto quer gostar, e quando finalmente chega a casa, tem ainda o habitual encontro com o espelho, espera-o a interminável disputa sagrada de todas as noites. “Já te disse que estás bonito e que só tenho olhos para ti”, diz o Narciso do espelho, mas não há meio destas palavras doces acalmarem o narciso em frente ao espelho, que se deita todas as noites descontente a olhar para o tecto.
Vai Narciso à festa da aldeia, agarrado ao seu cigarrinho e a ajeitar, com a mão livre, as calças que lhe caem. Nem reparou que emagreceu de tão interessado que está em fazer passar a mensagem sobre o segredo dos seus ombros encolhidos. Há que fazer os outros entender a extensão da beleza do seu mundo mental. No meio de conversas, de danças e gritarias ele lá se embebeda outra vez, arranca um ou outro sorriso à Laura e chama a minha atenção. Popular este Narciso não? E pensa ele que é só popular com ele mesmo, não, minto, pensa ele que é só popular com o Narciso do espelho.
Apanho-o sozinho, já quando a noite quase se transformou em manhã, desta vez entretido a decifrar que segredos as tábuas da mesa de madeira, à qual ele se sentou, escondem. As saudades que tu deves sentir do Narciso do espelho…
Olha que tu, Narciso de fora do espelho, tão preso estás em ti mesmo que nem vês que os primeiros raios de sol do dia estão a iluminar-te de uma maneira especial. Uma pequena luz foi reservada apenas para ti e tu nem a enxergas.
Vou-me sentar na mesma mesa em que tu te encontras e falar de mim até levantares essa tua cabeça, descontraíres esses ombros, parares de pensar nos teus próprios pensamentos e veres um pouco mais da beleza do mundo fora da tua mente. E depois vou só limitar-me a esperar que, um dia destes, movido pela fúria ou pelo desassossego, te decidas a partir o Narciso do espelho.
Texto por: Snow White
A imagem é: Narciso (1594-1596), por Caravaggio.
5 comments:
tive agora a olhar para uma foto minha. sou bonito
Até que és mesmo
Interessante e diferente
Obrigada, gostei especialmente de escrever este texto.
Brutal!! Adorei!! Meus Parabens!!!
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